[Amigos de Krishna] Por que a Bhagavad-gita É Tão Pessimista?
Por que a Bhagavad-gita É Tão Pessimista?
Chaitanya-charana Dasa
“Este mundo é miserável”, declara Krishna. Onde Ele quer chegar?
Após apresentar uma palestra em uma universidade, me fizeram perguntas que eu havia feito a mim mesmo quando conheci a filosofia da consciência de Krishna: “Por que a filosofia védica é tão pessimista? Já que o mundo oferta ao mesmo tempo prazer e dor, por que a Bhagavad-gita considera o mundo um lugar de sofrimento?”
Ao longo de uma década e meia de prática e distribuição da consciência de Krishna, tenho preparado e refinado respostas a essas perguntas. Aqui está minha resposta curta em quatro pontos:
Analisemos estes pontos sistematicamente.
Mergulhe no Sofrimento
Podemos conseguir insights quanto ao pêndulo prazer-dor do mundo examinando o pêndulo prazer-dor do nosso corpo, através do qual experimentamos o mundo fundamentalmente. Para esta discussão, utilizarei a sigla DIVE (mergulhar em inglês).
A vida no corpo material tem mais possibilidades de sofrimento do que prazer.
Duração: Os prazeres que o corpo pode nos conceder, tais como comer e ter relações sexuais, duram apenas poucos minutos. No entanto, as dores que o corpo pode nos causar, tais como problemas crônicos nas costas ou artrite ou câncer, podem durar anos.
Intensidade: O corpo é bem mais sensível à dor do que ao prazer. Se estamos deitados confortavelmente em uma cama, sendo massageados por mãos calmantes e macias, uma agulhada em qualquer parte do corpo irá causar uma dor cuja intensidade excede a do prazer experimentado em todas as outras partes do corpo.
Variedade: As maneiras pelas quais o corpo pode nos dar prazer são poucas, enquanto as maneiras pelas quais pode nos causar dor são muitas, até inumeráveis. Os olhos podem nos dar prazer especialmente por vermos objetos atrativos, mas podem nos causar dor por serem golpeados, perfurados ou arrancados, ou por se inflamarem, se infectarem ou se cegarem por uma miríade de doenças.
Extensão: Poucas partes do corpo podem nos dar prazer, primariamente os órgãos sensoriais, como os olhos, ouvidos e a pele, enquanto muitas – ou melhor, todas – as partes do corpo podem nos causar dor. A não ser de uma maneira geral por contribuir para um corpo saudável, nenhum dos órgãos internos, como os rins, fígado ou coluna, podem nos conceder prazer, mas todos podem nos causar dor excruciante por adoecerem de numerosas maneiras.
Esta análise mostra que o pêndulo prazer-dor do corpo, e, por extensão, o pêndulo prazer-dor do mundo pende pesadamente para o lado da dor. É por isso que, com uma franqueza não sentimental, o Srimad-Bhagavatam (7.9.25) declara que o corpo material é ashesha-rujam virohah, o foco de criação de doenças e misérias ilimitadas, e a Bhagavad-gita (8.15) declara que o mundo material é duhkhalayam ashashvatam, um local de sofrimentos onde a pouca felicidade que podemos obter com as nossas atitudes e ações mais otimistas é arruinada devido à sua natureza inescapavelmente temporária.
Quando o Pior nos Leva ao Melhor
A mensagem essencial da Bhagavad-gita, no entanto, não é pessimista, mas otimista. Ela nos indica o mundo espiritual eterno, onde nós, como almas indestrutíveis, podemos reaver nosso destino de felicidade eterna. Para garantir que não percamos esta oportunidade gloriosa devido à esperança fútil por felicidade neste mundo, ela proclama francamente que a verdadeira natureza deste mundo é o sofrimento. Aqui está uma analogia para melhor entendermos essa estratégia.
A mensagem essencial da Bhagavad-gita é otimista, nos indicando o mundo espiritual.
Imagine que uma pessoa é diagnosticada com um câncer grave que é curável, mas somente através de quimioterapia rigorosa. O paciente pode hesitar inicialmente quando informado do severo tratamento, mas pode ficar disposto a passar por ele quando são lhe apresentadas duas escolhas: uma morte excruciante, gradual e inevitável, ou um tratamento exigente que irá recuperá-lo. Quando defrontados com um problema sério, muitas vezes uma análise objetiva da pior das hipóteses é o melhor caminho para se chegar à melhor delas.
Os textos védicos aplicam esse mesmo princípio à nossa atual existência material. Eles explicam que, no momento, todos nós estamos doentes; somos almas eternas afligidas por amnésia. Embora tenhamos direito a uma vida eternamente bem-aventurada em serviço devocional a Deus, devido ao fato de nós nos confundirmos com nossos corpos materiais temporários, temos que sofrer desnecessariamente os sofrimentos da velhice, doença, morte e renascimento – repetidas vezes. O lado “bom” da vida – o desfrute dos prazeres mundanos – nos cega a esses duros fatos da vida e nos enche com a esperança infrutífera de que alguns ajustes temporários dentro da nossa existência material nos libertarão do sofrimento. Assim, o “lado bom” da vida perpetua nossa existência obscura e doente.
A maioria de nós se complica tanto perseguindo o “lado bom” da vida que nós esquecemos ou negligenciamos seus sofrimentos e, então, perdemos a oportunidade de nos curarmos. Curarmo-nos requer uma terapia espiritual na qual nos expomos a estímulos espirituais centrados em Deus, como os santos nomes, os santos devotos, as escrituras sagradas, belas deidades e os remanentes sagrados de alimentos oferecidos a Deus (prasada). Diferente da quimioterapia, que é dolorosa do começo ao fim, essa terapia espiritual aparenta ser dolorosa no início, mas acaba sendo praticada com alegria após um pouco de prática (Gita 18.37). Na verdade, se a terapia for praticada na companhia de devotos-guias atenciosos e competentes, pode ser praticada alegremente desde o início. Porém, experimentar essa alegria requer uma prática comprometida e contínua, um preço que a maioria de nós reluta fortemente a pagar. Assim, os textos védicos nos oferecem uma análise firme e não sentimental das duas opções diante de nós: sofrimentos durante a vida que são repetidos por muitas vidas futuras, ou uma terapia devocional que requer comprometimento agora, mas que nos restabelece na nossa vida eterna, bem-aventurada e natural. Frente a esses fatos, nossa relutância em adotar a terapia espiritual evapora, e a porta que leva à vida eterna se abre.
Saber como será a vida sem o tratamento pode nos ajudar a aceitá-lo.
Esta estratégia védica profundamente sábia é evidente no fluxo progressivo da Bhagavad-gita: Inicialmente, ela declara que este mundo é um lugar imutavelmente miserável, e finalmente revela o potencial dentro de cada um de nós de alcançar a bem-aventurança divina. Assim, o pessimismo inicial da filosofia védica é o começo essencial que conduz a seu otimismo definitivo.
Não Subestime a Realidade
Discussões sobre o mundo espiritual podem nos levar à pergunta: “Este anseio por um outro mundo cheio de felicidade não é uma tentativa de se escapar da realidade?”
Sim, vida espiritual é uma tentativa de escapar – não da realidade, mas para a realidade.
Examinemos objetivamente o que as pessoas consideram como vida real. É a luta perpétua do ventre ao túmulo. É uma luta contra a pressão extremamente árdua – às vezes literalmente, como sob o peso de mochilas escolares, e sempre figurativamente. Lutamos contra a pressão das expectativas alheias, contra concorrência acirrada por emprego, contra desarmonia familiar e guerras domésticas quentes e frias, contra o envelhecimento do corpo e, finalmente, contra a sentença de morte inerente aos nossos corpos mortais. Em meio a todas essas lutas, nos ocupamos em versões complexas da busca animalesca por comida, sono, acasalamento e defesa. A incerteza de sucesso nessas buscas nos estressa constantemente, e a esperança por conseguir algum sucesso é o que chamamos de “otimismo”. Mas não podemos simplesmente desejar que as doenças, o envelhecimento e a morte de nossos corpos desapareçam. Mesmo quando angústias não nos devastam, nossas vidas se tornam tão entediantes que há mais pessoas consultando psicólogos por causa do tédio do que por angústia. Mesmo a atitude mais otimista faz pouco para mudar esta intragável, porém inegável, realidade fundamental: a natureza de sofrimento da existência material.
Como definimos como real uma vida que é tão vazia, tão sem sentido, tão decepcionante, tão sufocante? Como nos enganamos ao ponto de aceitarmos como real uma avaliação tão ridiculamente baixa do nosso potencial humano? Entendamos com uma analogia.
Quando pessoas desejam jogar um videogame de realidade virtual, este desejo as separa da realidade de suas identidades e as lança em um mundo cibernético ilusório onde experimentam emoções artificiais por se confundirem com o personagem do videogame. De modo semelhante, a Bhagavad-gita (13.22) relata que, quando desejamos desfrutar de coisas materiais, este desejo nos separa da realidade das nossas identidades espirituais e nos lança no mundo material ilusório, onde experimentamos emoções artificiais por nos confundirmos com nossos corpos materiais. No entanto, diferentemente de um videogame, esta confusão material não é nem descontraída nem agradável; nos concede prazer insignificante e nos causa dor significante.
Quando, por boa fortuna, percebemos esta natureza falha e malfadada das nossas buscas ilusórias, esta realização desperta dentro de nós um desejo de pôr um fim à nossa separação da realidade. E quanto mais abrirmos mão do prazer ilusório e do otimismo hiper-ilusório que nos mantém atados à busca por esse prazer ilusório, mais reconquistamos nossa felicidade legítima e real em amor espiritual por Deus
Nossa vida real é muito mais graciosa do que esta.
Nossa vida real – nossa vida eterna no mundo espiritual – é muito mais digna do que as indignidades às quais nossos corpos nos sujeitam, muito mais graciosa do que as desgraças com as quais o mundo nos golpeia. Nossa vida real é a vida do espírito, a vida da liberdade, a vida da felicidade, a vida da eternidade. A Bhagavad-gita proclama que nossa vida real está além da vida deste mundo material de sofrimento. Nossa vida real sacia nosso anseio inato por imortalidade. Nela, nosso desejo intrínseco por amor é eterna e completamente preenchido, repousando-o na todo-atrativa e todo-amorosa Pessoa Suprema, Krishna. Essa vida de amor é a nossa vida real, e não a presente caricatura feia e desafortunada da vida que erroneamente rotulamos de vida real.
A Harmonia do Aqui e do Além
É por isso que a Gita (8.15) insiste para que nós retornemos do mundo material, onde hoje vivemos, para o mundo espiritual, ao qual pertencemos. Apesar desta aparente rejeição do aqui em favor do além, a Gita (18.78) conclui com uma garantia de sucesso no aqui. Isso demonstra a mensagem de conexão da Gita, não a de rejeição: a conexão do aqui com o além, não a rejeição do aqui, com uma visão somente para o além. De fato, a Gita declara que o aqui é também o reino de Deus (5.29), com o qual Krishna se importa tanto que Ele faz Seu advento repetidas vezes (4.7) para restabelecer a ordem virtuosa (4.8) que ajuda as pessoas a atingirem o mundo espiritual (4.9). A Gita (11.32-33) ainda indica que, por agirmos responsavelmente no aqui, nós O podemos auxiliar em preservar e promover a ordem aqui.
A Gita não nos ensina a rejeitar este mundo em favor do mundo espiritual, mas a harmonizá-los.
Se nós nos importarmos somente com o aqui, ficaremos apegados ao aqui e cegos para o além, assim nos privando do nosso direito à felicidade eterna. Se nós nos importarmos somente com o além, ficaremos apáticos e irresponsáveis para com o aqui, assim falhando em exercer nosso papel de preservar a ordem no aqui.
Tendo em mente a beleza, a glória e a eternidade do mundo espiritual, podemos nos imunizar contra a possibilidade de sermos cativados pelos prazeres fugazes e promessas ilusórias deste mundo. Tendo em mente o papel do mundo material como a arena que nos molda para que possamos atingir o mundo espiritual, podemos enfrentar os desafios deste mundo com determinação e sabedoria. É por isso que a Gita (8.7) nos compele a um equilíbrio dinâmico entre o aqui e o além: Deseje sinceramente o mundo espiritual, e aja com responsabilidade neste mundo aqui.
Tradução de Gaura Prasada Dasa. Revisão de Bhagavan Dasa.
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